Há um famoso clipe nos arquivos históricos que mostra um jovem fã perturbado dos Beatles se dirigindo à residência privada de John Lennon. Ele queria expressar o quão profundamente a música da banda havia mudado sua vida. O fã acreditava que as canções falavam diretamente com ele, carregadas de um significado profundo e pessoal.
Lennon, no entanto, rapidamente refutou essa ideia. Ele explicou ao admirador que, em grande parte, estava apenas se divertindo com as palavras e que não havia nenhuma intenção oculta por trás das composições. Para ele, era diversão, um jogo de rimas e sons, sem mensagens codificadas a serem decifradas.
A Anedota de John Lennon e a Interpretação Subjetiva
Essa perspectiva de Lennon lança uma sombra sobre qualquer tentativa de análise profunda das letras dos Beatles. No entanto, o fascínio por encontrar significados ocultos é inegável, e os fãs frequentemente “leem nas entrelinhas” da obra dos Beatles. É nesse contexto que surge uma teoria fascinante sobre a canção “Come Together”, identificada pela comentarista online Connie McLean.
McLean, como todo bom fã dos Beatles, mergulhou nas entrelinhas de uma das letras talvez mais “bobas” da banda para desvendar o que pode ser, na verdade, uma ode a si mesmos. A teoria sugere que, a cada novo verso, Lennon canta sobre um Beatle individual, descrevendo-o de forma abstrata e destacando suas particularidades. Uma ideia que ganha peso, especialmente considerando o refrão unificador da música.
A canção foi escrita em meio ao turbilhão da iminente separação da banda, e essa interpretação a transforma em um tipo de último “chamado de sereia”, uma reflexão final sobre a união que estava prestes a se desfazer. Analisar “Come Together” sob essa ótica revela camadas surpreendentes de uma das faixas mais icônicas do álbum Abbey Road.
“Come Together”: Uma Ode Disfarçada aos Beatles?
A teoria de Connie McLean propõe que John Lennon utilizou seu estilo lírico irreverente e enigmático para pintar retratos de seus companheiros de banda. Embora Lennon pudesse ter negado qualquer intenção profunda, a riqueza dos detalhes abstratos nos versos sugere uma conexão que vai além da simples brincadeira com palavras.
Decifrando Cada Verso: De Ringo a McCartney
O primeiro verso da canção, “Here come old flat-top, he come groovin’ up slowly”, é interpretado como uma referência a Ringo Starr, o baterista jovial e adorável da banda. A menção a “flat-top” e “groovin’ up slowly” remete claramente à responsabilidade rítmica de Ringo na banda, seu papel fundamental em ditar o compasso.
As linhas seguintes, como “He got ju-ju eyeball, he one holy roller / He got hair down to his knee”, podem parecer arbitrárias ou até contraditórias, dado que Ringo tinha o cabelo mais curto durante a fase Abbey Road. No entanto, a frase final, “Got to be a joker, he just do what he please”, parece retornar ao baterista, conhecido por ser o palhaço da banda, sempre pronto para aliviar o clima com seu bom humor.
Avançando para o próximo Beatle, o verso seguinte se encaixaria com George Harrison, o mais espiritual do grupo. Lennon, sensível a essa faceta de George, canta: “He wear no shoeshine, he got toe-jam football / He got monkey finger, he shoot Coca-Cola / He say, ‘I know you, you know me’ / One thing I can tell you is you got to be free.”
Novamente, a letra oscila entre o nonsense lennoniano e uma precisão sutil. Referências a caminhar descalço e à busca pela liberdade se alinham de forma inerente com a personalidade e as crenças de Harrison, que muitas vezes rejeitava as convenções e valorizava a expressão individual e espiritual.
No terceiro verso, Lennon, de forma quase narcisista, descreve a si mesmo: “He bag production, he got walrus gumboot / He got Ono sideboard, he one spinal cracker / He got feet down below his knee / Hold you in his armchair, you can feel his disease.” A referência a “Ono sideboard” é inconfundível, aludindo a Yoko Ono, seu grande amor e colaboradora.
Além disso, “walrus gumboot” parece uma alusão direta ao seu estilo de composição irriverente, que gerou a faixa “I Am The Walrus”. As outras linhas, embora mais enigmáticas, podem refletir a intensidade e, talvez, a natureza complexa e por vezes “doentia” de sua própria personalidade, como percebida por ele ou pelos outros.
Por fim, o parceiro de composição de Lennon, Paul McCartney, é trazido à tona no último verso: “He roller-coaster, he got early warnin’ / He got muddy water, he one mojo filter / He say, ‘One and one and one is three’ / Got to be good-lookin’ ’cause he’s so hard to see.” Das quatro descrições, esta é, sem dúvida, a mais difícil de decifrar completamente.
No entanto, o conhecido amor de Paul por Muddy Waters (“muddy water”) já oferece uma pista sólida. A descrição de “roller-coaster” poderia ser uma referência ao seu espectro emocional ou à sua versatilidade musical. A última linha, “Got to be good-lookin’ ’cause he’s so hard to see,” parece admitir abertamente que ele era tradicionalmente visto como o Beatle “bonitão”, mesmo que sua complexidade fosse difícil de capturar.
A verdade é que, se os Beatles escrevessem uma ode a si mesmos, ela nunca seria uma carta de amor direta e explícita, especialmente com Lennon no comando lírico. Essa seria a forma mais próxima que eles chegariam: brincando arbitrariamente com referências de caráter antes de rapidamente subvertê-las com o completamente abstrato. Mas esses versos, combinados com o grito lírico de “Come Together”, conferem à teoria uma validade intrigante. Se nada mais, ela torna a canção ainda mais icônica e fascinante, adicionando uma camada de profundidade a um clássico que parecia, à primeira vista, apenas uma diversão com palavras.