A indústria musical brasileira está prestes a testemunhar uma decisão histórica que pode revolucionar a forma como os direitos autorais são interpretados e remunerados na era digital. No centro desse debate está um embate jurídico de grande magnitude envolvendo dois ícones da música brasileira, Roberto Carlos e os herdeiros do saudoso Erasmo Carlos, contra a editora Fermata do Brasil. Esta batalha, que já percorreu diversas instâncias e agora chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), não é apenas uma disputa entre artistas e uma empresa; é uma discussão que levanta questões fundamentais sobre a validade de contratos antigos em um mundo dominado pela tecnologia de streaming, e, principalmente, sobre a justa remuneração para os criadores de arte.
Você já parou para pensar como suas músicas favoritas de Roberto Carlos, criadas décadas atrás, chegam até você em plataformas como Spotify ou YouTube? E como os artistas por trás dessas obras são pagos por milhões de execuções digitais? O cerne do problema reside nos contratos de direitos autorais firmados entre 1964 e 1987, uma época em que tecnologias como o streaming sequer apareciam nos sonhos mais visionários. Esses documentos previam a exploração comercial das músicas em suportes físicos, como vinis, CDs e DVDs, mas não havia qualquer previsão para a exploração digital. Agora, com o streaming respondendo por cerca de 65% da receita global da indústria musical, a discussão sobre a adaptação desses acordos se tornou não apenas relevante, mas crucial para o futuro do mercado fonográfico.
Este artigo aprofundará os detalhes dessa complexa disputa, explorando os argumentos de Roberto Carlos e Fermata, a jornada do caso até o STF e as profundas implicações que a decisão dos ministros terá para artistas, editoras, gravadoras e as próprias plataformas de streaming em todo o Brasil.
O Pano de Fundo da Disputa Entre Roberto Carlos e Fermata: Contratos de Outra Era
A história começa com a assinatura de 73 contratos de obras entre Roberto Carlos e Erasmo Carlos com a Fermata do Brasil, abrangendo um período entre 1964 e 1987. É vital contextualizar essa época: o mundo da música girava em torno de LPs, fitas cassete e, posteriormente, CDs e DVDs. A ideia de acessar um vasto catálogo musical com um simples clique no celular, sem a necessidade de mídias físicas, era impensável.
Os termos desses contratos, segundo a defesa dos artistas, previam a exploração comercial exclusivamente em formatos físicos, os chamados “suportes materiais”. Isso significa que a Fermata tinha o direito de comercializar as músicas em vinis que giravam em toca-discos, em CDs que brilhavam em aparelhos de som e em DVDs em players domésticos. A revolução digital, impulsionada por gigantes como Spotify, YouTube e Deezer, estava a anos-luz de distância e, portanto, não foi contemplada nos acordos iniciais.
A Tese dos Artistas: Remuneração Justa e Adaptação à Nova Economia
Roberto Carlos e os herdeiros de Erasmo Carlos (representados pelo espólio de Erasmo) sustentam que esses contratos antigos não contemplavam expressamente a exploração das obras em plataformas digitais. Para eles, o uso das músicas em serviços de streaming – que hoje são a principal fonte de receita da indústria – deveria ser objeto de novos acordos e negociações, garantindo uma remuneração mais justa. A base desse argumento é clara: na época da assinatura, ninguém poderia prever o impacto e o alcance das novas tecnologias no mercado da música.
Os advogados dos artistas vão além, alegando que, mesmo que os contratos fossem considerados válidos para o ambiente digital, a Fermata teria descumprido obrigações contratuais, principalmente no que diz respeito à falta de transparência na prestação de contas. Um exemplo citado, que choca a defesa é o de um pagamento irrisório de R$ 4.454,81 por milhares de execuções em um único trimestre. Isso é visto como uma afronta, considerando que as músicas da dupla, que são clássicos ouvidos por gerações, geram rios de dinheiro nas plataformas digitais, mas supostamente renderiam aos artistas uma fração ínfima do que lhes seria devido. A acusação de falta de dados claros sobre o número de reproduções levanta suspeitas de má-fé, violando o princípio da boa-fé objetiva, tão fundamental no direito. A classe artística, de modo geral, tem reclamado há anos dos valores irrisórios pagos por streaming, onde cada execução pode gerar menos de um centavo.
A Defesa da Fermata: Cessão Definitiva e Segurança Jurídica
Do outro lado do ringue jurídico, a editora Fermata do Brasil defende com veemência que os contratos assinados com Roberto Carlos e Erasmo Carlos são de “cessão definitiva de direitos autorais”. Isso significa que, no momento da assinatura dos papéis, os artistas teriam transferido integralmente os direitos patrimoniais das músicas para a Fermata, sem possibilidade de revisão ou retomada. Em outras palavras, a editora se considera a “dona absoluta do catálogo”, com o direito de explorar as músicas em qualquer formato, existente ou não na época da assinatura – seja em um LP ou em um algoritmo de streaming que toca em uma playlist matinal.
A Fermata argumenta que esses contratos, firmados entre os anos 60 e 80, abrangem qualquer forma de exploração comercial, incluindo tecnologias futuras, mesmo que elas não existissem na época. Para a editora, a cessão dos direitos é como um “cheque em branco”, válido para o passado, presente e futuro. Eles se apoiam na ideia de que os contratos garantem um direito exclusivo, protegido pela Constituição, de explorar as obras em qualquer mídia. Além disso, a empresa adverte que uma decisão favorável aos artistas seria um “terremoto no mercado fonográfico”, pois traria insegurança jurídica e abalaria a confiança de editoras, gravadoras e plataformas. Em nota, a Fermata afirmou que “todos os juízes que analisaram o caso até agora entenderam que os contratos são válidos” e que sua atuação foi adequada.
A Jornada até o Supremo Tribunal Federal: O Fator “Repercussão Geral” no caso que envolve Roberto Carlos
A briga judicial não é recente. Roberto Carlos e os herdeiros de Erasmo Carlos enfrentaram derrotas em instâncias anteriores, incluindo a primeira instância no Tribunal de Justiça de São Paulo e, em novembro de 2024, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ). O STJ, inclusive, confirmou a validade dos contratos de cessão, mantendo a Fermata como a dona exclusiva do catálogo de 73 canções.
Apesar dos reveses, os artistas não desistiram e levaram a briga ao Supremo Tribunal Federal (STF). E aqui reside um ponto crucial: o STF reconheceu a “repercussão geral” do caso. Isso significa que a decisão dos ministros não afetará apenas Roberto Carlos, os herdeiros de Erasmo e a Fermata; ela terá um “impacto vinculante”, servindo como precedente obrigatório para todos os tribunais do Brasil em casos semelhantes. Em outras palavras, o que o STF decidir sobre este caso “vai virar lei para a indústria musical brasileira”.
A relevância da repercussão geral se deve ao fato de que a questão transcende os interesses das partes envolvidas, tocando em um mercado que movimenta bilhões de dólares. Para se ter uma ideia, só em 2023, o streaming gerou 12 bilhões de dólares globalmente, e no Brasil, o consumo digital cresceu 30% desde 2020. O STF terá a difícil tarefa de responder a uma pergunta “espinhosa”: “Contratos assinados antes da era digital, que não previam streaming, podem ser interpretados como válidos para essas novas tecnologias?”. E mais: “Como garantir que os artistas sejam remunerados de forma justa em um mercado onde as plataformas digitais ficam sempre com a ‘fatia do leão’?”.
A corte reconheceu a repercussão geral porque o caso aborda questões constitucionais de peso, como o direito de propriedade, o direito autoral e a autonomia da vontade do artista. Além disso, o Tribunal tem recebido um volume crescente de disputas semelhantes envolvendo artistas, herdeiros, editoras e plataformas. Sem uma decisão clara do STF, o mercado fonográfico brasileiro permaneceria em um “limbo jurídico”, com artistas lutando caso a caso para recuperar o controle de suas obras ou obter uma remuneração decente.
Implicações Históricas: O Que a Decisão do STF Pode Mudar
O julgamento do STF, previsto para o segundo semestre de 2025, tem potencial para ser um “divisor de águas”. Os possíveis cenários e seus impactos são vastos e complexos:
- Cenário 1: STF Decide a Favor dos Artistas (Roberto Carlos e Herdeiros de Erasmo)
- Ondas de Revisões Contratuais: Se a corte validar a tese de que contratos antigos não abrangem automaticamente o streaming, isso abrirá a porta para uma “onda de revisões contratuais”. Artistas e herdeiros de artistas em todo o Brasil poderão exigir novos acordos com editoras e gravadoras.
- Maior Transparência e Fatia dos Lucros: Isso demandaria maior transparência e uma “fatia maior dos lucros gerados pelas plataformas digitais” para os artistas. Seria uma vitória significativa para a classe artística, que há anos reclama dos valores irrisórios pagos pelo streaming.
- Impacto nas Plataformas de Streaming: Uma decisão que force renegociações e aumente os royalties pode elevar os custos para plataformas como Spotify, que já operam com margens estreitas e dependem de acordos com editoras para seus catálogos. Isso poderia impactar o faturamento dessas plataformas.
- Valorização do Artista e Patrimônio Cultural: Para além do aspecto financeiro, essa decisão fortaleceria a autonomia criativa dos artistas, incentivaria novos talentos e renovaria a relação entre criadores, editoras e público, promovendo um ambiente mais justo e equilibrado para a produção cultural no Brasil.
- Cenário 2: STF Decide a Favor da Fermata (Cessão Definitiva)
- Fortalecimento de Editoras e Gravadoras: Se o STF der razão à Fermata, confirmando que os contratos de cessão definitiva abarcam qualquer formato de exploração, editoras e gravadoras sairão fortalecidas, mantendo o controle sobre catálogos valiosos.
- Desincentivo a Novos Talentos: Isso poderia desincentivar novos talentos musicais a assinarem contratos “draconianos”, já que o precedente reforçaria a ideia de que, uma vez cedidos os direitos, o artista perde qualquer chance de renegociação, mesmo diante de mudanças tecnológicas radicais. A indústria musical, durante décadas, se aproveitou muitas vezes da ingenuidade ou da falta de assessoria jurídica adequada dos artistas, especialmente em épocas onde o poder de barganha dos músicos era mínimo, resultando em “contratos tirânicos” de cessão definitiva.
- Manutenção do Status Quo para Plataformas: Uma decisão favorável às editoras manteria a situação atual, com as plataformas de streaming continuando a pagar valores baixos aos artistas e embolsando a maior parte da receita obtida.
- Perpetuação da Desigualdade: Essa interpretação da cessão definitiva representa um risco significativo para os artistas, pois impede ajustes contratuais que reflitam as transformações do mercado, criando um precedente que pode preservar práticas injustas e perpetuar a exploração.
Transparência e Prestação de Contas: Um Desafio Central
Independentemente do resultado, a questão da transparência e da prestação de contas emerge como um desafio central. A acusação de falta de clareza da Fermata na prestação de contas aponta para um problema recorrente na indústria: artistas muitas vezes não têm acesso claro a informações sobre o uso e o lucro gerado por suas obras. A ausência de dados precisos dificulta a negociação justa e alimenta suspeitas de má-fé, sublinhando a necessidade de regulamentações mais rigorosas e mecanismos de fiscalização eficientes.
A Lei de Direitos Autorais de 1998 trouxe avanços significativos, tornando contratos de edição musical mais comuns, onde o artista mantém o controle dos direitos e negocia prazos e condições. Contudo, acordos antigos como o da Fermata continuam sendo uma espécie de “âncora” que prende artistas a termos completamente desvantajosos.
O Futuro da Música em Jogo
A briga no STF, liderada por Roberto Carlos e os herdeiros de Erasmo Carlos, expõe uma verdade incômoda sobre a indústria fonográfica: por muito tempo, ela tratou os artistas “como peças descartáveis numa engrenagem que privilegia o lucro acima de qualquer coisa”. Esses artistas estão dando voz a milhares de outros músicos que, ao longo das décadas, foram explorados por contratos que podem ser descritos como “leoninos”.
A decisão do STF, seja qual for, terá um impacto profundo e duradouro, reverberando por muitos anos e definindo não apenas como os artistas serão remunerados, mas também como o Brasil protege ou não o seu patrimônio cultural na era digital. Este caso é um lembrete contundente da necessidade de se adaptar às rápidas inovações tecnológicas e garantir que a arte seja valorizada em todas as suas formas de exploração, garantindo que os criadores recebam o que é justo pelo seu talento.
O julgamento será um marco. O equilíbrio entre a justiça para os artistas e a sustentabilidade econômica do ecossistema musical digital está em jogo, e a resposta do STF será fundamental para moldar o futuro da música no Brasil.