Em uma tarde ensolarada de outubro, em Londres, a oportunidade de conversar com Paul McCartney sobre um aspecto pouco explorado de sua carreira se concretizou. A influência da música clássica experimental, fundamental para a sonoridade inovadora dos Beatles, é o tema central desta conversa. A vanguarda musical, longe de ser uma mera curiosidade, permeou a obra da banda, moldando seu som único e duradouro.
A Vanguarda na Sala de Gravação: De Cage aos Beatles
A jornada dos Beatles pelo universo experimental começou em meados da década de 1960. McCartney assistiu a performances de Cornelius Cardew, Karlheinz Stockhausen e teve encontros com figuras como Delia Derbyshire e Luciano Berio. Essa imersão teve impacto profundo nas criações do grupo. McCartney revela a inspiração de John Cage em uma das músicas mais icônicas da banda: “Cage tinha uma peça que começava em uma extremidade da faixa de rádio”, conta ele, “e ele simplesmente girava o botão e ia até o fim, rolando aleatoriamente por todas as estações. Levei essa ideia para ‘I Am the Walrus’. Disse: ‘Tem que ser aleatório’. Acabamos encontrando um trecho de Shakespeare – Rei Lear. Foi adorável ter essa palavra falada naquele momento. E isso veio de Cage.”
Musique Concrète e a Manipulação Sonora
A influência da musique concrète, pioneiramente desenvolvida por Pierre Henry e Pierre Schaeffer, também é destacada. Utilizando-se de fitas magnéticas para manipular sons gravados, Schaeffer e Henry criavam collages sonoros que desafiavam as convenções musicais. “Nem tudo o que vemos é claro e figurativo”, afirma McCartney, apontando para uma obra de arte abstrata. “Às vezes, quando você está dormindo ou esfregando os olhos, vê algo abstrato: sua mente sabe sobre isso. Sabíamos sobre essas coisas. Era o mesmo com a música. Estávamos brincando, mas nossas mentes podiam aceitar, pois era algo que já conhecíamos de certo modo. Embora estivéssemos em uma outra estrada em relação a compositores mais clássicos, éramos semelhantes no sentido de que também queríamos liberdade.”
As Máquinas e a Experimentação
A aquisição de gravadores Brenell abriu novas possibilidades para os Beatles. McCartney descreve a gravação de “Tomorrow Never Knows”: “Estava se tornando uma música dos Beatles meio fora do comum”. Ele lembra de levar uma sacola plástica cheia de loops de fita — com sons gravados em casa — para os estúdios Abbey Road durante as sessões de “Revolver”. “Instalei os gravadores para criar sons estourados, zumbidos e dissolvidos, todos misturados. Poderia ter um solo de guitarra — direto ou maluco —, mas quando você coloca os loops de fita, eles levam a outro lugar, pois, quando tocam, você obtém todos esses tipos de acidentes felizes. São imprevisíveis, e isso combinava com a música. Usamos esses truques para obter o efeito que queríamos.”
Lennon e a Busca pela Loucura Criativa
John Lennon também se encantou com os gravadores Brenell, resultando em “Revolution 9”: “John era fascinado e amava a loucura disso”, diz McCartney. Enquanto Lennon buscava a experimentação radical, McCartney preferia usar os novos recursos de estúdio de forma mais controlada, integrando-os à estrutura da canção pop. Essa dinâmica entre os dois geniais músicos foi crucial na criação de um novo tipo de música pop, inteligente e informado pela vanguarda. “Você pensa: ‘Ah, nosso público quer uma música pop'”, diz McCartney. “E então você pode ler sobre William Burroughs usando a técnica de corte e pensa: ‘Bem, ele tinha um público, e seu público gostou do que ele fez’. E, eventualmente, decidimos que nossos públicos viriam conosco, em vez de depender de nós para alimentá-los com uma dieta convencional.”
A Conexão entre a Vanguarda e a Música Popular: Um Efeito Cascata
O caminho trilhado pelos Beatles não é isolado. A autora Elizabeth Alker, em seu livro “Everything We Do Is Music”, traça paralelos entre a música experimental e a música popular, demonstrando como artistas de diferentes contextos se influenciaram mutuamente, transcendendo fronteiras e criando obras icônicas. Compositores como John Cale, La Monte Young, e até mesmo Radiohead e a música eletrônica se beneficiaram dessa mescla de estilos.
Liberdade Criativa e a Influência de Linda McCartney
Por fim, McCartney reflete sobre a liberdade criativa. Ele atribui grande parte dessa liberdade à sua falecida esposa, Linda: “Ela costumava dizer: ‘É permitido’. E isso iluminou os céus para mim. Eu pensava: ‘Sim, é permitido’”. A declaração resume a essência da conversa: a abertura à experimentação e a busca por novas formas de expressão musical. A influência da vanguarda na obra dos Beatles não é apenas um detalhe, mas a chave para entender a revolução sonora que a banda protagonizou e seu legado duradouro.
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