40.000 anos da Musica - Da Voz Primitiva à Era Digital
40.000 anos da Musica - Da Voz Primitiva à Era Digital

40.000 anos da Música: Da Voz Primitiva à Era Digital

Em uma época em que a música é tão acessível quanto a água encanada, estamos imersos em um oceano de sons. Ouvir uma sinfonia de Beethoven duas vezes na vida seria um feito notável para alguém nascido em sua época, enquanto hoje, ela está a um clique de distância. Essa onipresença sonora nos convida a repensar a história da música, que muitas vezes é reduzida a uma galeria de obras e compositores.

Essa visão tende a transformar a arte em um mero objeto, uma peça de museu imaginário, supervalorizando o papel do compositor em detrimento da musicalidade inata presente na maioria das pessoas. Em vez de focar apenas em ‘quem escreveu o quê e quando’, devemos buscar uma perspectiva mais ampla e universal, pois a música, em sua essência, é absolutamente global.

Da Gruta ao Palco: A Evolução dos Sons e Instrumentos

É quase inconcebível traçar uma pré-história da música, já que a invenção do fonógrafo por Edison em 1877 marcou o início do registro sonoro. Antes disso, nosso conhecimento se baseia em inferências e descobertas arqueológicas. O instrumento mais antigo que possuímos é a voz humana, um recurso portátil e sempre disponível.

Além da voz, temos evidências de instrumentos líticos, como estalactites e os famosos ‘gongos de rocha’ na Tanzânia. Contudo, um marco crucial foi a descoberta de flautas de osso, feitas a partir de ossos de abutres, datadas em aproximadamente 40.000 anos e encontradas em cavernas do sul da Alemanha. O desafio, claro, é que materiais orgânicos se biodegradam, limitando o que podemos encontrar.

A evolução da música está intrinsecamente ligada às grandes épocas da humanidade: caçadores-coletores, comunidades agrícolas e o surgimento das cidades. Cada uma dessas fases se associou a mentalidades e necessidades musicais distintas. Os caçadores-coletores nômades, por exemplo, precisavam de praticidade, seja apenas a voz, flautas leves ou pequenos instrumentos de percussão. Sua música era fluida, do momento, como a observada nos Pigmeus de Camarões, onde cada performance soa diferente.

40.000 anos da Musica - Da Voz Primitiva à Era Digital

Com o advento da agricultura, a humanidade se fixou. A mentalidade se voltou para o ciclo das estações e da vida, levando à invenção do trabalho repetitivo e da música cíclica. Rituais musicais surgiram, refletindo essa nova organização. Quando a música migrou da fazenda para a cidade, novas transformações ocorreram.

Instrumentos puderam se tornar mais pesados – como sinos e gongos – e também mais delicados – como harpas e alaúdes – pois a vida sedentária permitia sua criação e manutenção. A função da música também mudou com o crescimento da hierarquia social. Ela passou a ser uma ‘serva do poder’, seja do príncipe ou da igreja, e os músicos se profissionalizaram.

Assim nasceram os concertos, eventos que exigiam lazer e dinheiro, geralmente desfrutados pela aristocracia ou pela alta burguesia. Por milhões de anos, porém, a regra era que a resultado final da peça fosse funcional – um “assobiar enquanto se trabalha” – e, acima de tudo, participativa. Não havia distinção entre quem criava e quem ouvia; eram as mesmas pessoas. A ideia de um compositor e um ouvinte é uma invenção puramente moderna.

a msica mais antiga do mundo

A Partitura e a Redescoberta da Participação Musical

Há mil anos, em 1020, um monge italiano chamado Guido inventou a notação musical em pautas, mudando para sempre a música ocidental. Essa ferramenta tornou-se um instrumento de controle da Igreja. Ao registrar os cantos, a Igreja garantia que monges em qualquer parte do império cantassem literalmente da mesma partitura. Quando o império se expandiu, como na invasão do México por Cortés em 1519, a notação seguiu junto, tornando-se uma “ponta de lança da globalização” cultural. Em 1530, dez anos após a dizimação dos índios por Cortés, músicos astecas já cantavam polifonia espanhola na Catedral do México.

As consequências da notação em pautas foram diversas, e muitas delas, francamente, negativas. Ao “prender” as notas em uma página, é como “capturar uma borboleta”. A nota é removida da fluidez da voz, tornando-se precisa. Enquanto a maioria das pessoas fala ou canta com flutuações de tom, a notação “congela” a nota, tornando-a fria e mecânica.

Ela também transformou a música em um objeto, o que é contra-intuitivo. Música não é um objeto; é uma atividade, algo que se faz, como dançar ou correr. Ao objetificá-la, criou-se uma divisão entre o compositor, criador do “objeto”, e aqueles que o reproduzem mecanicamente.

Felizmente, estamos testemunhando um retorno à condição participativa da música, a norma de milhares de anos atrás, onde todos tinham um papel igual na criação e no desfrute musical. A integração crescente com a tecnologia, impulsionada pela internet, acelerou essa mudança cultural. Hoje, podemos criar e compartilhar música de nossas próprias casas, ampliando nossa capacidade e imaginação.

Desde a humilde flauta de osso, a tecnologia sempre serviu para estender as capacidades humanas. Assim como Stockhausen ou Beyoncé alcançam hoje o que seria incompreensível para Mozart ou Beethoven séculos atrás, nem sequer podemos começar a imaginar as possibilidades ilimitadas que nos aguardam no futuro da música.

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